O Ministério Público, o MST e a dignidade da pessoa humana: Qual dignidade? Qual “pessoa humana”?
Data de publicação: 29-04-2011
A Constituição de 1988 prescreve, no TÍTULO I, Dos Princípios Fundamentais, Art. 1º que a "República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, dentre outros itens: II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana. No Art. 3º do mesmo Título I afirma que "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda no mesmo Título, o Art. 4º preceitua que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos, para lembrar incisos pertinentes a estes comentários.
Vale isso dizer que a Constituição de 1988, na perspectiva de seus princípios, elegeu categorias de indiscutível realce político para colocar o Brasil no cenário dos povos civilizados como um país fecundado por ideais democráticos e práticas direcionadas à consolidação desses traçados utópicos. Nessa ótica constitucional de cidadania com liberdade, justiça social, solidariedade, promoção de igualdade, extirpação da pobreza, proeminência dos direitos humanos, parece induvidoso que respeito à pessoa humana e sua dignidade tem o significado, na mais tímida interpretação, de conferir especial deferência ao "ser” humano ontologicamente considerado, independentemente da condição social, econômica, ideológica, orientação sexual, religiosa, etnia ou qualquer outra categoria que distinga esse "ser”, dotado de inteligência, espiritualidade, divindade, sujeito histórico e capaz de transformar a sociedade e a própria história através das várias estratégias de resistência e de intervenção na realidade, em busca da edificação de um outro mundo onde todos e todas possam usufruir do bem comum e de uma sociedade equilibrada e justa.
Uma dessas formas de resistência é a luta coletiva que pode se apresentar tanto por mecanismos dialógicos, a exemplo das audiências com as instituições formais, como nos movimentos de massa identificados pelas marchas e as ocupações. Só assim os excluídos, dentre os quais, os sem-terra, se fazem palpáveis, ocupam os espaços midiáticos sempre prontos a disseminar notícias que não só desqualificam o movimento social como estimulam o confronto entre a sociedade mal informada e os reais desafios dessa parcela considerável da população no enfrentamento com a opressão das elites patrocinadas pelo aparato repressivo de Estado.
Dentro desse contexto de peleja em busca da cidadania e mais, marcando anualmente o mês do Massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, em 1996, quando dezenove trabalhadores sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar, o MST instituiu o Abril Vermelho, promovendo ocupações com objetivo não só de lembrar o triste episódio que culminou com a perda de tantos companheiros, como também para reafirmar a luta em defesa da reforma agrária como tática do ajuste social tão distante ainda da realidade de milhares de "cidadãos e cidadãs” aqui e no resto do mundo.
Nessa direção também rumaram os três mil integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) da Bahia, ocupando a Secretaria de Agricultura do Estado, no Centro Administrativo. Atento às naturais e inevitáveis demandas das ocupações, o governo, corretamente, buscou intervir nas questões infra-estruturais preventivas de danos e riscos maiores à saúde, à segurança, à vida que podem se instalar nesses ambientes de luta, onde se aglutinam brasileiros e brasileiras vitimizados pela política de exclusão social implantada pelo colonialismo e mantida pelos que apoiam e aplaudem os processos de dominação que teimam em colocar, de um lado, os poderosos, os que contam nos índices econômicos, do outro lado, os reprimidos em suas mais básicas necessidades.
Desse modo, o governo da Bahia providenciou a instalação de banheiros químicos, chuveiros e toldos para proteger os trabalhadores e trabalhadoras, principalmente as gestantes e crianças que participam das ocupações. A justificativa da Secretaria da Agricultura para tal investimento, cuja verba teve a liberação devidamente aprovada pela Procuradoria Geral do Estado, se afirma no escopo de garantir aos acampados "condições dignas de alimentação e higiene”. Razões de "saúde pública e segurança alimentar” dos acampados também teriam autorizado as despesas, de acordo com o Chefe da Assessoria Geral de Comunicação do Estado.
Nesse sentido, causa estranheza noticia veiculada no Jornal A Tarde On Line, dia 15 de abril de 2011, sobre processo de investigação a ser instaurado pelo Ministério Público da Bahia, através do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepan), para apurar a compra de carne e o patrocínio de infra-estrutura, com dinheiro público, para os integrantes do MST acampados na Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária da Bahia (Seagri). Ao admitir não conhecer "com detalhes as circunstâncias que levaram a secretaria a pagar despesas”, a promotora Eliete Rodrigues, do Gepan, escancara a distância entre o Ministério Público e os Movimentos Sociais, o desconhecimento (ou a indiferença) da instituição quanto às carências, as injustiças, as batalhas que compõem a história dessas bravas organizações de massa. Ao anunciar já ter instaurado procedimento para investigar a situação, conforme noticia a imprensa (A Tarde On Line, 18 de abril) a promotora Rita Tourinho considera que o governo não pode privilegiar apenas um movimento social e que sua função (do governo) deve ser voltada para o "atendimento da coletividade como um todo”.
Espantoso que o Ministério Público adote medidas investigatórias para apurar ações da Secretaria de Agricultura por estar praticando as matrizes fundamentais da Constituição de 1988, garantido aos sem-terra (ou a outro movimento social que em determinado momento esteja pugnando por seus direitos) o exercício da cidadania, o respeito à sua dignidade enquanto pessoa, aos direitos humanos porque homens e mulheres com direito a ter direitos.
Assombra que o Ministério Público se oponha publicamente ao governo que, por dever de estado, disponibiliza a trabalhadores e trabalhadoras que se movimentam na ação cotidiana por mais justiça social e menos desigualdades, as condições mínimas de sobrevivência na área ocupada por centenas de iguais a nós em humanidade, (porque humanos), exatamente por não terem acesso a direitos pelas vias normais de políticas públicas de saúde, educação, alimentação, lazer. E ainda, principalmente, porque exigem agilidade e eficiência nas ações necessárias à reforma agrária, ali estão e ali têm de permanecer até que suas vozes sejam escutadas e suas justas e legítimas reivindicações, atendidas.
Mais bizarro ainda que o discurso do Ministério Público tenha se ancorado na critica à atuação que entende como meramente pontual do governo, pela Secretaria de Agricultura, quando compra alimentos, monta postos de fornecimento de água, viabiliza sanitários públicos aos acampados. Ou seja, coloca à disposição dos sem-terra infra-estrutura que onera os cofres públicos para atender às demandas de uma categoria que tanto acumula dignidade, espírito de luta e reconhecimento de si própria, individual e coletivamente, como sujeito histórico pronto a construir um mundo mais justo, como atrai para si, por essa identidade tão singular, a raiva ideológica ocultada em cada atitude de oposição à forma de estar-no-mundo que faz do homem, da mulher, da criança sem-terra um forte, um guerreiro com e para uma sociedade justa, igual e solidária.
Ora, se apenas a motivação policialesca, legalista e mesquinha de que o dinheiro público foi gasto indevidamente é de fato o que vai fundamentar qualquer procedimento do Ministério Público da Bahia para apurar a conduta do governo no amparo à saúde, à segurança, à vida de trabalhadores e trabalhadoras que ocupam espaços públicos (sem violência) na luta por direitos, algumas reflexões devem antecipar a intervenção institucional, até mesmo para resguardo do papel que a Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério Público, quando, no Art. 127, construiu sua nova identidade, enquanto "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Se é verdade que o Ministério Público tem por função constitucional defender a ordem jurídica, é contraditório e insultuoso o investimento da instituição em mecanismos que alimentem a marginalização dos sem-terra, que possam acirrar a discriminação e o preconceito contra os trabalhadores e trabalhadoras que marcham e acampam em busca de direitos. Medidas que obstruam o governo quando, diante da precariedade de um acampamento, adota ações no sentido de preservar a vida dos acampados, acolhendo a prevalência de direitos que, antes de se destinarem a essa ou àquela categoria, naquele momento histórico são direitos humanos, de homens, mulheres, crianças, idosos, que o estado tem responsabilidade política de amparar e de assegurar respeito à dignidade de cada um e de cada uma dessas pessoas que ali se abarracam.
Nessa linha de raciocínio, se cabe ao MP a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, correto seria que os membros da instituição que presumivelmente desempenham funções em alguma Coordenação de Cidadania, Direitos Humanos, Defesa da Criança e do Adolescente, do Idoso, acorressem de imediato ao local ocupado para exigir do governo providências garantidoras de condições mínimas de higiene, saúde, alimentação, até mesmo por conta da proteção a crianças e adolescentes que acompanham as famílias acampadas, exatamente porque são seus filhos e filhas.
Merece repulsa, portanto, qualquer movimento da instituição contra a conduta, legal, constitucional, humana e, sobretudo, politicamente correta do governo da Bahia, compatibilizada com os paradigmas ético-político-fisosóficos da Carta Política de 1988, quando, até por medida preventiva, coloca à disposição dos sem-terra acampados equipamentos públicos e por isso a todos pertencentes. A propósito dessa utilização de espaços, serviços públicos estaduais e municipais, por uma população de fato "privilegiada” que faz desses espaços latifúndios ocupados por empresas denominadas Blocos, por ocasião do Carnaval, a título de exemplo, não se escuta qualquer protesto do Ministério Público contra o modelo carnavalesco seletivo que está implantado em Salvador.
E mais uma reflexão emerge desse tema. Se for a moralidade pública o que impulsiona o Ministério Público a investigar os gastos do governo com uma comunidade tão desprovida de poder econômico a exemplo dos sem-terra, a sociedade também tem o direito de questionar e avaliar o espaço-tempo de comprometimento dos membros da instituição com suas nobres e respeitáveis funções. Vale lembrar, quanto a esse fato, que não é insólito nem infreqüente o Currículo de um Promotor de Justiça ostentar, além de sua condição de membro do Ministério Público, a função de magistério não em uma, o que representaria significativa contribuição acadêmica, mas em várias Instituições de Ensino Superior (por vezes em locais de grande distância de suas Comarcas) e em cursos preparatórios para concursos.
Como distribuem o tempo e o espaço entre os labores das Promotorias e as atividades pedagógicas dentro e fora das salas de aulas é um debate que precisa vir a público e passar pelo crivo do controle social. Essa vigilância saudável, de fato, seria então pensar a moralidade pública a partir de perspectiva mais ampla e horizontal, evitando, desse modo, a odiosa e imprudente verticalização das intervenções, tanto mais compulsivas e rigorosas quanto menos poder político e social retém a categoria investigada.
Por fim, os que militamos nas trincheiras dos direitos humanos e que acreditamos na luta coletiva do povo organizado para construir uma sociedade justa, igual e solidária, esperamos que o Ministério Público, ao se conscientizar de sua função política de defesa do regime democrático, consolide uma relação dialógica com os Movimentos Sociais, enquanto representações vivas dessa sociedade que a Constituição de 1988 proclama e deve ser efetivamente constituída.
Marilia Lomanto Veloso
Mestre e Doutora em Direito Penal PUC/SP
Coordenadora do Curso de Direito da UEFS
Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos
Associada da AATR
Ex-Promotora de Justiça do Estado da Bahia